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quinta-feira, 21/11/2024

Ouvidorias militares, manifestações políticas, atuação ambiental: entenda as polêmicas da nova lei dos PMs

Texto aprovado pelo Congresso dá respaldo à criação de ouvidorias subordinadas aos comandantes das polícias, e não a civis; à participação de agentes em manifestações, ainda que sem farda; e à ampliação da atuação na área ambiental. Relator avalia que Lula deve vetar pontos.

O Congresso Nacional aprovou na última terça-feira (7) a lei orgânica nacional das PMs e dos Corpos de Bombeiros. O texto atualiza a legislação nacional sobre o tema – a atual é de 1969, editada durante a ditadura militar. Agora, o presidente Lula (PT) analisará se sanciona ou veta (total ou parcialmente) o texto.

A nova lei possui pelo menos três pontos polêmicos que podem ser alvo de veto, segundo o próprio relator, o líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (PT-ES). São eles:

  • Ouvidorias militares: a lei possibilita que as PMs de cada estado criem ouvidorias próprias subordinadas aos comandantes das tropas – hoje, as ouvidorias são civis, em geral.
  • Manifestações políticas: a lei proíbe que policiais e bombeiros em atividade se manifestem politicamente usando farda ou símbolos da instituição. Para Contarato, isso pode ser contrário à Constituição.
  • Atuação na área ambiental: permite que a PM atue de forma ostensiva na “proteção ambiental”, lavre autos de infração, aplique sanções e penalidades administrativas. Também possibilita que os policiais militares exerçam “por meio de delegação ou de convênio outras atribuições” na área de prevenção e repressão a atividades contra o meio ambiente.

Leia, abaixo, como foi a tramitação e, a seguir, saiba mais sobre os pontos polêmicos da lei.

Como foi a tramitação

O texto foi apresentado pela primeira em 2001, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, mas por anos não avançou no Congresso.

No final de 2022, foi aprovado na Câmara dos Deputados, tendo como relator Capitão Augusto (PL-SP), integrante da Bancada da Bala. Na ocasião, deputados retiraram o ponto mais polêmico do texto, que previa que as PMs poderiam tomar decisões sem aval dos governadores.

Na terça (7), foi aprovado pelo Senado em votação simbólica, sem registro nominal dos votos dos senadores, com votos da base do governo e da oposição.

Especialistas consultados dizem que o texto deveria ter tido um debate amplo com a sociedade sobre o projeto, dada a importância do tema.

“Não houve audiência pública [apesar de não serem obrigatórias, são uma oportunidade para que as vozes da sociedade sejam ouvidas]. A quem serve essa lei? Essa lei, do ponto de vista corporativo, da instituição, é ótima. Ela atende os interesses da categoria”, diz Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM de São Paulo.

“O que nós temos no país é PMs e Corpos de Bombeiros vinculados ao AI-5”, afirmou ao senador Fabiano Contarato (PT-ES), em referência ao Ato Institucional Nº 5, o mais autoritário da Ditadura Militar, que está expresso no Decreto-Lei 667, de 1969, que reorganizou as polícias militares e os corpos de bombeiros e era, até agora, a principal legislação federal sobre o assunto.

Contarato disse, ainda, que o projeto foi “amplamente debatido” pela sociedade e aprovado na Câmara dos Deputados “por unanimidade”, incluindo apoio dos partidos progressistas. “[O projeto] Veio para o Senado com uma limitação de que não haveria alteração de mérito, porque se não voltaria para a Câmara dos Deputados”, disse C

Polêmica 1: Ouvidoria militar

A lei aprovada que as corporações podem criar “ouvidoria subordinada diretamente ao comandante-geral”. Hoje, no geral, as ouvidorias são vinculadas às Secretarias de Segurança Pública ou funcionam de maneira independente. Com a mudança, novas ouvidorias criadas pelas PMs passam a respondem ao chefe da corporação que elas fiscalizam.

Para especialistas, uma ouvidoria militar pode ser um problema não só para a transparência e para a prestação de contas, mas também para os próprios policiais que queiram denunciar abusos sofridos internamente na corporação.

“A partir do momento que eu tenho uma ouvidoria subordinada ao comandante-geral, me parece que não é possível fazer cobrança, monitoramento, acompanhamento, avaliação de uma forma mais crítica em nome da sociedade. Como a população vai ter acesso a essa ouvidoria para relatar abusos cometidos pela polícia se esse órgão estará vinculado a própria polícia? Foi uma porta fechada de participação da sociedade. É um retrocesso, não combina com democracia”, diz o tenente-coronel da reserva da PM de São Paulo Adilson Paes de Souza.

A visão é compartilhada por Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.

“Quando a gente estabelece um texto que subordina ao comandante geral, a gente tira a natureza de controle externo da ouvidoria. É muito grave essa mudança. E ela é confusa: ela não diz que vai substituir as ouvidorias que existem. De repente, pode até conviver com a ouvidoria atual. Ainda que não diga que ela acaba com o modelo de controle externo, esse modelo proposto de ouvidorias subordinadas aos comandantes no mínimo enfraquece [o controle externo].”

Segundo o relator do texto no Senado, Fabiano Contarato (PT-ES), a lei não impede que as secretarias de segurança pública ou que os governos estaduais continuem tendo suas próprias ouvidorias, ainda que veja o trecho como um ponto sensível que pode ser vetado pelo presidente Lula.

Polêmica 2: manifestações políticas

O artigo 19 da lei proíbe que militares em atividade manifestem, publicamente ou pelas redes sociais, opiniões “político-partidárias” usando “farda, patente, graduação ou símbolo da instituição militar”. Veda, também, uso de imagens que mostrem “fardamentos, armamentos, viaturas, insígnias ou qualquer outro recurso que identifique o vínculo profissional com a instituição militar”.

Para Contarato, esses pontos são contrários à Constituição, que garante a livre manifestação de pensamento, e também podem ser vetados.

Já o artigo 20 afirma que militares (bombeiros ou policiais) não podem comparecer “fardados” a eventos “político-partidários”, dando a entender que PMs em atividade poderão frequentar esse tipo de manifestação ou se manifestarem em redes sociais, desde que não estejam fardados ou usem símbolos das corporações.

“É fora de propósito e legaliza a politização da PM. Isso não é aceito em instituições militares”, analisa Rafael Alcadipani, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Fundação Getúlio Vargas especializado em organizações policiais.

Polêmica 3: atuação ambiental

A lei regulamenta o envolvimento das PMs em ações ostensivas “com vistas à proteção ambiental”, possibilitando, por exemplo, que os policiais lavrem “autos de infração ambiental” (algo já permitido para as polícias militares ambientais).

O texto, entretanto, autoriza também que as PMs exerçam “por meio de delegação ou de convênio, outras atribuições na prevenção e na repressão a atividades lesivas ao meio ambiente”.

Essa redação ampla abre margem para que os policiais atuem em outras frentes na área ambiental.

“O que isso significa exatamente? A PM poderá fazer licenciamento? Emissão de guia de importação e exportação?”, questiona o tenente-coronel Adilson Paes de Souza.

Contarato, relator do texto, lembra que hoje órgãos de fiscalização ambiental sofrem com falta de pessoal e que há cerca de 300 servidores para fiscalizar todo o país. “Só a polícia militar ambiental tem mais de 8 mil servidores”, diz ele. “Mas isso também pode ser objeto de veto, é um ponto sensível”, afirma o senador.

Confira outros pontos da nova lei das PMs e o que dizem os especialistas:

Participação em eleições

A nova lei, caso sancionada, autoriza que PMs que estejam há mais de 10 anos em serviço façam campanha eleitoral para cargos políticos de farda. Pela regra, o policial só passará à reserva remunerada se for eleito. Se o militar tiver menos de 10 anos de serviço, será afastado da ativa no dia seguinte ao registro da candidatura.

Gabriel Sampaio, diretor da ONG Conectas, considera que o projeto perdeu a oportunidade de acabar com o que chama de “porta giratória” entre a corporação e a política partidária.

“Foi a perda de duas oportunidades importantes: a primeira, incidir em uma regra mais rígida no que tange à participação em eleições e um afastamento em um período maior e não apenas aquele que vale para todos os servidores públicos; também foi a perda de oportunidade para uma regra mais rígida em relação ao eventual retorno daqueles que gozam de mais de 10 anos de serviço militar”, afirma Sampaio.

Cota feminina

A lei estabelece que “fica assegurado, no mínimo, o preenchimento do percentual de 20% das vagas nos concursos públicos por candidatas do sexo feminino, na forma da lei do ente federado, observado que, na área de saúde, as candidatas, além do percentual mínimo, concorrem à totalidade das vagas”.

Para Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, a redação do texto dá margem para que concursos sejam abertos com apenas 20% das vagas para mulheres, transformando o que seria um piso em um teto.

O senador Fabiano Contarato afirma que o que se buscou com a lei não foi o estabelecimento de teto, mas sim de um mínimo de participação feminina, e que foi uma reivindicação da bancada feminina.

Comando da PM

A nova lei aprovada no Congresso determina que os comandantes das Polícias Militares responderão diretamente aos governadores dos estados, o que desobrigaria, na visão de especialistas, os estados a terem Secretarias de Segurança Pública que englobem a PM e a Polícia Civil.

Para Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, a mudança vai além do que existe na prática. Já há estados que não possuem secretarias, como o Rio de Janeiro, mas a nova lei amplia essa possibilidade.

“A coisa do comandante-geral responder ao governador é um passo muito além [do que já existe]. Porque dá guarida legal para os estados acabarem com as secretarias de segurança pública e tira a possibilidade de o poder militar estadual estar submetido ao poder civil, algo que muita gente das PMs nunca aceitou”, diz Alcadipani.

Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia como um retrocesso.

“É repetir o modelo do Rio de Janeiro, de descoordenação. Por mais que você diga que irá reforçar, valorizar as polícias, você não tem um comando único para pensar, por exemplo, os princípios do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública). O governador não tem tempo de fazer o gerenciamento cotidiano”.

Contarato afirma que é uma prerrogativa dos governadores estabelecer, ou não, uma secretária de segurança pública, e que o texto não muda o regime que já existe hoje.

Ações de inteligência e contrainteligência

O artigo 10 da lei orgânica prevê que as polícias militares possam “produzir, difundir, planejar, orientar, coordenar, supervisionar e executar ações de inteligência e contrainteligência”. O texto não detalha quais critérios para tais ações ou se haveria necessidade de autorização judicial para execução de tais planejamentos e execuções para “neutralizar ilícitos e ameaças de qualquer natureza que possam afetar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio”, como diz a lei.

Para Gabriel Sampaio, da Conectas, essa redação pode causas problemas na prática.

“Esse dispositivo, de fato, preocupa e externamos ao longo da tramitação do projeto. Era muito importante que a lei oferecesse parâmetros de controle de atividades como as que estão destacadas aqui que, por sua definição, têm um conteúdo muito amplo. Simplesmente citar que direitos e garantias serão observados sem oferecer parâmetros, deixam a atividade de inteligência sem efetivo controle, seja administrativo, social ou externo, e sem a devida prestação de contas.”

No entanto, delegados da Polícia Civil e da Polícia Federal ouvidos avaliam o trecho como um avanço, capaz de colocar “cada um no seu quadrado” ao delimitar o que a Polícia Militar pode fazer.

“As ações de inteligência serão delimitadas finalmente para atividades de polícia ostensiva e preservação da ordem pública e apuração de crimes militares (não mais de crimes comuns), observando os limites e restrito às competências constitucionais e legais das Polícias Militares – justamente para evitar o choque de atribuições. Portanto, as duas leis vão justamente pacificar conflitos e problemas relacionados às lacunas legislativas hoje existentes”, afirma Rodolfo Queiroz Laterza Presidente da Adepol (Associação dos Delegados de Polícia do Brasil).

O entendimento é o mesmo da presidente da Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (Fenadepol), Tânia Prado. “A contra inteligência em geral tem a ver com as condutas dos próprios servidores (monitorar se há infiltrados do crime nas corporações, por exemplo). Essa norma nova não alarga as atribuições da PM nem ameaça as da Polícia Civil”, analisa.

Formação em direito

A nova lei cria a exigência de que os PMs que assumirem funções de comando (como chefia, direção, administração superior, entre outros) tenham bacharelado em Direito. Neste trecho há duas análises: de que é uma vantagem de ter profissionais com o conhecimento da lei em posições de destaque, e de que é um problema, pois os policiais poderiam buscar atribuições que seriam da polícia civil.

O tenente-coronel Adilson Paes de Souza avalia a previsão de forma positiva:

“Eu acho isso uma vantagem, porque a carga horária do curso de formações de oficiais é muito baseada em matéria de direito e boa parte da atividade policial é feita em cima de interpretação da lei. Eu não vejo como uma desvantagem, talvez poderia se pensar como agregar outras matérias, para além da formação em Direito”, diz.

Já Rafael Alcadipani, professor da FGV, vê como um possível problema.

“Existe uma disputa para eles [PMs] poderem ter aquilo que se chama de ciclo completo e os PMs terem acesso, digamos, à essa parte jurídica da persecução criminal, que não faz parte da Polícia Militar. É uma polícia que cada vez menos a gente controla querendo ter cada vez mais atribuições. Acho que esse é o pano de fundo da questão do Direito [dentro da Lei Orgânica das PMs]”, afirma.

Relatório de transparência

Um ponto positivo avaliado pelo tenente-coronel da reserva Adilson Paes de Souza e por Carolina Ricardo, diretora-executiva do Sou da Paz, é a previsão de que o comandante-geral assegure a divulgação pública de um relatório anual sobre:

  1. Representações recebidas e apuradas contra membros da instituição, o tipo de procedimento apuratório e as sanções aplicadas
  2. Número de ocorrências policiais atendidas, por tipo
  3. Letalidade e vitimização de policiais
  4. Letalidade e vitimização de civis
  5. Orçamento previsto e executado

“Não são todos os dados que nós gostaríamos [que fossem disponibilizados], mas ter essa obrigatoriedade para todas as PMs de apresentar um relatório dessa natureza é positivo”, afirma Ricardo.

Fonte: G1

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