Poppy, hoje com 18 anos, espera que sua história ajude outras pessoas.
Uma adolescente que ajudou a prender o avô paterno depois que ele abusou sexualmente dela na infância está se manifestando publicamente para “acabar com a vergonha” que ronda vítimas de abuso como ela. Ela espera que sua história ajude outras pessoas.
Poppy, britânica de 18 anos, deixou de lado seu direito ao anonimato porque acredita que “se as pessoas podem ver um rosto por trás de algo tão tabu, é mais fácil de se identificarem”.
Ela revela como, quando era criança, achava normal o abuso que sofria — e como sentiu um alívio enorme quando finalmente contou aos pais, aos 11 anos.
Só falando abertamente, diz Poppy, que os outros vão entender que o abuso pode acontecer dentro de qualquer família.
“Por que deveríamos nos esconder? É um crime, simples assim”, diz ela.
“Sou provavelmente como qualquer outra pessoa passando por isso. Os sobreviventes são muito bons em agir como se nada estivesse errado, as pessoas não viam isso em mim.”
Novos dados mostram que há mais casos de abuso sexual infantil sendo denunciados à polícia na Inglaterra e no País de Gales do que nunca. Foram registrados 105.542 crimes sexuais contra crianças no ano até março.
Os números do Home Office (Ministério do Interior) foram analisados para a BBC pelo Centre of Expertise on Child Sexual Abuse (CSA Centre), que estuda as causas, o impacto e a dimensão dos abusos.
O centro afirma que a maior conscientização é uma das principais razões para o aumento de 57% nos crimes denunciados em seis anos.
O abuso sexual infantil dentro do ambiente familiar é responsável por quase metade dos casos.
É por isso que Poppy acredita que tornar pública sua história vai ajudar as crianças a perceberem que alguém vai ouvi-las.
No Brasil, foram notificados 202.948 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes de 2015 a 2021. Em 2021, o número de notificações foi o maior registrado no período, com 35.196 casos, segundo o governo federal.
Os dados brasileiros também apontam que a maioria dos agressores são do sexo masculino, responsáveis por mais de 81% dos casos contra crianças de até 9 anos e 86% dos casos contra adolescentes de 10 a 19 anos. E as vítimas são predominantemente do sexo feminino: 76,9% das notificações de crianças e 92,7% das notificações de adolescentes.
Dando um salto
É um dia quente de verão. Em um aeródromo movimentado em Kent, no sudeste da Inglaterra, Poppy veste um macacão e recebe ajuda para ajustar o paraquedas.
Quatro dias depois de terminar as provas do A-levels (o Enem britânico) e uma semana antes de seu aniversário de 18 anos, ela está prestes a saltar de um avião para arrecadar dinheiro para uma instituição de caridade que a ajudou a lidar com o abuso que sofreu na infância.
Poppy acredita que seu primeiro salto de paraquedas reflete o “passo assustador” que você dá quando conta a alguém sobre o abuso.
Sua mãe, Miranda, está lá para apoiá-la. Seu pai, David, está trabalhando, mas ela faz uma vídeo chamada para ele pouco antes de entrar no avião.
Eles são uma família unida. Tiveram que ser para sobreviver nos momentos mais difíceis.
Eles acreditam que Poppy foi abusada pela primeira vez quando estava aprendendo a andar.
“Pensava que os avós faziam isso com os netos”, conta Poppy. “Achava que era bastante normal.”
O pai de David, John, ajudava a cuidar de Poppy quando eles precisavam. “Eu conhecia as deixas”, diz Poppy.
Quando o programa infantil que ela costumava assistir com ele terminava, o abuso começava.
Hoje, Poppy é eloquente e ponderada, mas, ao voltar sua mente para aquela época, ela hesita enquanto procura as palavras.
“Sempre começava com: ‘Você pode vir me ajudar a me vestir?’ E eu tinha que ir para o quarto dele. Era forçada a fazer coisas com ele, depois ele fazia coisas comigo.”
Quando digo a ela que sofreu abuso, ela diz que sim — e descreve a complexa relação que tinha com o avô paterno. Ela conta que sentia muita vergonha e acreditava que estava errada, então queria protegê-lo.
Aos cinco anos, pouco antes de uma viagem ao parque de diversões Legoland, ela tentou contar à mãe sobre o abuso.
Uma foto tirada naquele dia mostra uma garotinha com longas tranças loiras sorrindo para os pais. Se é difícil para Poppy encontrar as palavras certas agora, isso mostra como deve ter sido impossível para uma menina tão nova.
“Ela começou a nos contar, depois deu risadinha”, diz Miranda. “Nós simplesmente não percebemos o que ela estava tentando nos dizer.”
Os pais acharam que ela tinha visto John saindo do banho. David conversou com o pai.
“A resposta imediata dele foi: ‘Talvez eu tenha me trocado na frente dela'”, lembra David. O pai dele prometeu que isso não aconteceria novamente.
“Ele literalmente encerrou completamente o assunto, mas de uma forma calma. E eu pensei: Tudo bem! Ele é meu pai!”
O abuso parou, mas conforme Poppy crescia, sua ansiedade também aumentava. Ela conta que a culpa que sentia a estava consumindo.
Aos 10 e 11 anos, Poppy estava tendo aulas que alertavam sobre abuso e exploração sexual na escola. Ela começou a reconhecer o que havia acontecido com ela.
“Estou sentada lá pensando: ‘Estou envolvida nisso'”, diz Poppy. “Sou eu, isso é sombrio. É nojento.”
O CSA Centre estima que uma em cada 10 crianças terá sua vida prejudicada por alguma forma de abuso sexual até os 16 anos.
Chegou um dia em que Poppy ficou fisicamente doente. Sua mãe sugeriu que elas fossem dar uma volta. Foi então que Poppy deu o passo que faltava e contou a ela sobre o abuso.
“Foi nauseante”, lembra Miranda. “Ela obviamente viu a expressão no meu rosto e disse: ‘Mãe, por favor, não conte a ninguém. Não quero que nada aconteça com ele. Eu amo ele.’ Ela disse imediatamente: ‘A culpa é minha. Não sou uma pessoa boa’.”
Miranda diz que não sabia o que fazer a seguir. “Eu nunca tinha me deparado com ninguém que tivesse passado por isso. Eu só precisava mantê-la segura.”
Poppy estava preocupada com a reação da mãe, mas diz que foi um imediato “vamos superar isso”. O alívio que ela sentiu foi enorme, porque “agora estava nas mãos de outras pessoas”.
Elas voltaram então para casa. “Chorei muito, depois pensei: Como conto para o David?”, recorda Miranda.
Ela telefonou para o marido, que estava trabalhando.
Ele conta que houve uma “grande mistura de emoções” quando ouviu a notícia.
“Tive que tomar esta decisão de denunciar meu pai”, diz ele. “Foi incrivelmente difícil. No entanto, ela é minha filha e vem em primeiro lugar.”
Em poucas horas, John foi preso.
Poppy foi então entrevistada pela detetive Deniz Aslan, da equipe de proteção à criança da Polícia de Kent, e uma assistente social.
Aslan lembra que a menina de 11 anos estava muito ansiosa. Esta foi a primeira vez que ela explicou a alguém exatamente o que seu avô havia feito.
“Qualquer abuso sexual de uma criança é sério”, diz Aslan. “Mas o estupro de um menor de 13 anos, não acho que haja algo mais sério do que isso.”
Ela diz que o avô nunca admitiu o que havia feito.
A voz de Miranda falha enquanto ela afirma que a polícia contou a ela os detalhes do que havia acontecido.
“Ela estava sendo estuprada por ele. E ela se sentia responsável por isso. Nenhuma criança deveria se sentir responsável por isso”, diz ela.
“Poppy nunca nos daria todos os detalhes do que ele fez. Ela estava tentando nos proteger.”
Para David, houve a angústia de saber que seu pai era o abusador.
“Ele estava abusando da nossa filha e, cinco minutos depois, estava tomando uma xícara de chá com a gente. Eu pensei: Quem é esse homem?”
“Mas, da mesma forma, quando era criança, eu tinha muitas lembranças felizes. Havia um conflito real acontecendo na minha cabeça.”
Demorou 18 meses para o processo aberto contra o avô, John, ir a julgamento.
Na Inglaterra e no País de Gales, apenas 12% dos crimes denunciados resultam em acusações, de acordo com o CSA Centre — e normalmente leva quase dois anos para os casos chegarem ao tribunal.
A entrevista gravada de Poppy foi apresentada e, na sequência, ela foi interrogada. Ela tinha acabado de completar 13 anos.
“Eu estava tão desesperada para me defender”, diz ela. “De certa forma, havia uma boa quantidade de raiva, então contar o meu lado da história foi incrivelmente importante.”
Em 2018, John foi considerado culpado de três acusações, incluindo estupro, e foi condenado a 13 anos e meio de prisão.
O juiz descreveu o testemunho de Poppy como “dilacerante” e “totalmente convincente”. A defesa de John de que ela havia inventado o abuso, instigada pelos pais, foi descrita como “bastante absurda”.
Ele morreu na prisão no ano passado.
A condenação foi importante para Poppy, mas também a terapia. Ela teve que esperar cinco meses para receber esse suporte — e agora, pode demorar muito mais. Na instituição Family Matters em Kent, que atendeu Poppy, há mais de 300 sobreviventes de abuso na fila de espera.
“Quando você quer ajuda, você quer ajuda agora”, diz Mary Trevillion, CEO da Family Matters, cuja equipe passa muito tempo avaliando o risco que as pessoas correm enquanto esperam por um terapeuta.
Ela também vê que muitas pessoas escondem o que aconteceu com elas, e só pedem ajuda quando são adultas.
O Home Office informou que estava aumentando significativamente o apoio às vítimas de abuso sexual infantil — incluindo quadruplicar a verba para os serviços de auxílio às vítimas até 2024-25.
Também afirmou que reconhece que o abuso sexual infantil é um crime “frequentemente oculto” — e é por isso que o governo tornou “obrigatório para aqueles que trabalham com jovens denunciar qualquer suspeita de que uma criança está sendo abusada ou explorada sexualmente”.
Acreditem nelas
O pequeno avião voa alto no céu sem nuvens.
Poppy está saltando de paraquedas para arrecadar dinheiro para uma central de atendimento que apoia sobreviventes de abuso enquanto esperam para ser atendidos por um terapeuta. Até agora, ela arrecadou mais de £ 70 mil (cerca de R$ 425 mil).
Poppy e seu instrutor se dirigem até a beirada da porta aberta do avião — os campos de Kent estão espalhados abaixo deles.
Eles saltam.
Minutos depois, Poppy está no chão — em segurança e rindo.
“Você tem aquele pânico inicial”, diz ela. “Mas depois é simplesmente um alívio pular — você está lá agora, precisa fazer isso.”
Pensando na menina de 11 anos que encontrou coragem para contar à mãe sobre o abuso, Poppy diz: “Eu daria a ela um grande abraço. Sem a força dela, acho que não estaria aqui hoje, e a vida que tenho agora é incrível.”
A mensagem dela para outras pessoas que sofrem abuso é “dê esse passo”— conte a alguém.
“Não posso prometer que todos vão acreditar em você”, ela afirma. “Mas posso prometer que há alguém que vai acreditar em você, e há uma maneira de superar isso.”
Fonte: G1